sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O Dentista da Família

             Após a separação, minha ex-esposa passou a implicar com o dentista da nossa filha só porque ele é meu irmão. “Muitos genes em comum”, sentenciou. Mas André, meu irmão, é um ótimo dentista. Certa vez, eu estava com uma dor de dentes terrível, tão forte que preferiria morrer. Meu irmão fez um heróico tratamento de canal e apesar de ter salvo minha vida, ele é uma boa pessoa, não deve ser julgado por isso.
            Aliás, falando em vida e se me permitem um parêntese, quando eu completei três anos realizei uma façanha tão incrível que fiquei famoso em Porto Alegre. Não vem ao caso contar o fato agora, vão achar estar apenas me vangloriando, mas minha fama era tamanha que os dois hospitais da cidade daquela época passaram a disputar em qual eu haveria nascido. Ambos alegavam ter provas irrefutáveis de que eu havia chegado a este mundo no outro hospital.
            Mas, voltando ao problema de encontrar novo dentista para a Ana Clara, a situação não estava fácil. A menina havia crescido, tinha oito anos e tendia a aumentar com o tempo. Ela não aceitava mais sofrer na cadeira de nenhum dentista passivamente. Luciane ligou para reclamar do comportamento da minha filha – nessas horas, ela só tem pai.
            – Essa menina está cada dia pior.
            – Deve ter puxado a mãe – sussurrei.
            – O que você disse?
            – Ela está linda igual à mãe. O que ela fez?
            – Mordeu a orelha da secretária e a dentista se recusa a atender a Aninha.
            – Ora para isso temos duas orelhas. Diga a dentista para parar de frescura e atender a nossa filha. Ela tem sorte de não ter sido a dela.
            – Na verdade, ela já foi mordida... duas vezes.
            – E o que você propõe?
            – Veja se seu irmão consegue dar um jeito nela.
            – Deixe-me ver se me lembro bem. Ah, sim! Na última vez em que conversamos, você disse preferir ver a Aninha ser atendida por um açougueiro de matadouro clandestino de beira de estrada ao geneticamente similar a mim. Foi esse mesmo o termo que usou, ou esqueci alguma ofensa?
            – Não me incomode, veja se o incompetente resolve alguma coisa.
            Levei minha filha ao meu irmão prometendo bolas duplas de sorvete com cobertura de chocolate e amendoim caso ela cooperasse. Olhei pelo espelho retrovisor do carro e pelas duas mãos colocadas a frente da boca, acho que não fui bem sucedido. Bom, para isso temos irmão caçula, não é mesmo? Olhando para a cara da Ana Clara tive a impressão de estar assistindo ao filme Hannibal. E tem gente que não valoriza a profissão de dentista.
            Chegando ao consultório, contei a história toda para o meu irmão, ele só me disse: “Deixa comigo” e entrou levando minha filha. Eu pude vê-lo pegando uma fita métrica pelo vidro do consultório e medindo a criança, depois tirou um martelo enorme de dentro de um armário, além de outros objetos que não enxerguei. Ficou conversando uns quinze minutos com a Aninha, não sei o que disse, mas nunca vi uma criança tão colaborativa, ela ficou de boca aberta o tempo todo. Parecia a Estátua da Liberdade pasma ao ver o Cristo Redentor passar. Uma beleza.
            Eu fiquei curioso e retornei no dia seguinte para saber como ele havia conseguido aquele milagre. Meu irmão contou a Ana que antigamente não existiam dentistas. Os médicos cuidavam dos dentes das pessoas. Ele seria a última tentativa da mãe para ela ser tratada por um dentista, senão seria levada a um médico e disse isso mostrando o alicate enorme, o martelo e o serrote usados pelos médicos para arrancar o dente de um infeliz. Então minha filha perguntou se o paciente não ficava com uma dor terrível na gengiva após os dentes serem arrancados e meu irmão respondeu que, pela força que faziam os médicos, não era culpa deles se a gengiva não vinha junta. Pelo sim, pelo não, passei a me comportar direitinho também.

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